Esse texto serve como base para
as lives de história e história da arte realizadas no instagram @tuifotografia.
Nessas lives é trabalhado uma expressão ou obra artística e contextualizada em
um período histórico na qual ela foi produzida ou faz referência. Vale
ressaltar também que essa análise e texto são feitos por uma pessoa educada
como ocidental olhando um país oriental. A arte e a história não são desassociadas
da política e esse texto contém termos e interpretações da história ocidental e
europeia. O tema dessa semana é a arte Shunga e o Período Edo do Japão (1600 –
1868). Esse período leva o nome porque a principal cidade era Edo, atualmente conhecida
por Tóquio.
O período Edo é marcado pelo encorajamento
do comércio exterior no porto de Edo, atual Tóquio, e super valorização da
cultura tradicional. Foi também um forte período de controle interno através
dos xogunatos (sistema militar japonês) e regulamento dos feudos através de um
rigoroso código de leis. É um período complexo de certa forma cheia de
contradições. Ao mesmo tempo que havia o interesse de fazer política e comércio
com os países europeus, havia o grande medo da influência que esses
estrangeiros poderiam causar sob a sua cultura. Não distante disso veio o que ficou
conhecido por Problema Cristão.
O Japão já era conhecido pelos
europeus desde os relatos de Marco Polo, mas foram efetivamente os portugueses
os primeiros europeus a chegar e fixar comércio com o país em 1543. Por muitos
anos foram os únicos europeus a fazer negócios com os Japoneses e depois com os
Chineses, até hoje os museus que eram os palácios da família real portuguesa
possuem uma vasta coleção de porcelana chinesa. Com esse contato comercial e
consequentemente a fixação de alguns portugueses nas ilhas, trouxe o
cristianismo. É importante relembrar que os japoneses possuíam duas religiões
que não são exatamente como os ocidentais entendem por religião. O budismo e o xintoísmo
podem ser vistos como estilos de vida, mais precisamente o xintoísmo é um dever
cívico japonês, e, portanto, a fé cristã e a forma que ela é celebrada era uma
grande novidade no local. O Problema Cristão é justamente a ameaça dessa nova
religião sob a cultura tradicional japonesa, visto que o xintoísmo era muito
importante para manter a política no país.
Dentro do cristianismo veio a
noção de culpa. As religiões de origem bíblica trabalham a questão da culpa e
da punição. Esse conceito não estava presente no xintoísmo, que via o movimento
da vida como causa e consequência, mas não com o conceito de culpa e do
indivíduo ter que ser punido pelos seus atos ou atos de uma comunidade que ele
está inserido. Como já tratado em lives e textos anteriores, no xintoísmo o ser
humano convive com os espíritos, que representam a natureza, os animais e os
ancestrais, e deve ser sempre buscada uma boa relação entre esses espíritos e
os humanos. Uma boa relação seria o respeito aos recursos naturais e os animais,
se produzir e consumir sem prejudicar o meio ambiente por exemplo, e o respeito
as tradições. Já no cristianismo vemos a relação entre pecado e culpa. O
indivíduo que não obedece às leis divinas e comete os pecados será punido e ele
deverá sofrer pelas suas escolhas. Dentro dos pecados temos a luxúria, que é o
desejo pelo corpo. Esse pecado vai se desenvolver em uma realidade onde as
pessoas sob essa fé iriam se reprimir sexualmente, colocando o sexo apenas como
reprodução e retirando qualquer prazer que cabe a ele. O sexo é punível e
errado dentro de uma interpretação da fé cristã.
O surgimento, auge e decadência
da Shunga se deu dentro do período Edo. Foi neste período, provavelmente em
reposta aos estrangeiros que trouxeram a culpa cristã, que teve as famosas
gravuras sexuais Shunga. Eram pinturas, xilogravuras e livros que eram
comumente dadas como presentes na noite de núpcias. Nessas gravuras eram
retratadas posições sexuais de prazer; como sexo anal, sexo oral e beijos.
Algumas imagens mostravam sexo com duas pessoas do mesmo gênero e até com mais
de duas pessoas. Mostrando que o sexo no Japão do período Edo era de prazer e
não de culpa ou apenas voltado para a reprodução. A arte shunga servia para
apresentar expressões faciais de prazer e êxtase, dando destaque a órgãos e
posições sexuais. Outro importante características nessas obras é o registro
indumentário e mobiliário. Mostrando
roupas que eram usadas pelos nobres, assim como cabelo, maquiagem e acessórios.
Os móveis e os cômodos também eram do mais alta classe japonesa clássica.
O xintoísmo não considerava o
sexo pecaminoso e valorizava o prazer sexual. Embora fosse severamente punível
o adultério e casais homoafetivos eram excluídos da sociedade. Podemos ver que mesmo
tendo o incentivo da liberdade sexual a sociedade do lado de fora punia quem não
se comportasse segundo os valores tradicionais que estão estabelecidos até
hoje. Podemos ver uma certa dualidade nesse período; o prazer é permitido desde
que seja em privado. A produção desse tipo de arte também era exclusivamente
masculina, mulheres não eram autorizadas a desenhar o Shunga, as escolas de
arte eram exclusivas para homens. Sendo mais um marco na desigualdade de gênero
no país.
Ainda no período Edo, mais
precisamente em 1722, Shunga foi criminalizado. A arte continuou a ser
produzida, porém a sua comercialização e distribuição foram consideradas
crimes. Nos séculos seguintes a arte foi mais uma vez denunciada. No século XX
quando os artistas europeus Toulouse-Lautrec e Picasso encontram a arte Shunga,
ela passa mais uma vez a ser valorizada, dessa vez por interesse estrangeiro. Em
2009 o museu Picasso de Barcelona fez uma exposição sobre Shunga e a influência
que esse movimento artístico causou na produção de Picasso.
O fim da reclusão se deu no final
do período Edo, em 1854 com a assinatura do Tratado Kanagawa. Os Estados Unidos
atracaram com quatro navios na baía de Edo, atual Tokyo, em 1953 e exigiram uma
abertura dos portos. Depois de muitas negociações com o Conselho dos Veteranos
do Japão, houve a reabertura de dois portos para o comércio estrangeiro. Essa
abertura trouxe uma revolta do povo para o xogunato, o povo quando em contato
com os estrangeiros e a melhoria da economia começaram a criticar o governo.
Abe Masahiro, líder do Conselho dos Veteranos, tentou buscar novos aliados para
manter o poder do xogunato. Abe acabou por construir novas defesas nos portos e
escolas de defesa naval com a ajuda de estrangeiros dos Países Baixos. A
abertura do país para o ocidente não foi aceita por muitos clãs e Abe foi
substituído no ano seguinte por Hotta Msayoshi. Essa reação contra a abertura
do país fez fomentar escolas de ensino como a Escola Mito, que era baseada no
neo-confucionistas e xintoístas, essas escolas viriam a formar o orgulho
nipônico que foi crucial para a estrutura do imperialismo japonês no período
das Grandes Guerras Mundiais.
Podemos ver então que a arte
Shunga, que precisou de toda uma introdução até chegar nela, teve a sua criação
e auge no período em que o país ficou mais fechado para as forças estrangeiras.
O mesmo período que logo nas primeiras décadas teve contato com o cristianismo
pelos portugueses e tentou extinguir a religião cristã do país. No final desse
período o país passa por outra crise relacionada com o estrangeiro e mesmo com
os portos abertos a política se volta para dentro do país a fim de preservar a
sua cultura.
É infantil dizer que a arte está
a parte da política. Nenhum movimento artístico é a parte do meio em que ele é
desenvolvido. Assim como o Shunga, uma arte erótica e popularizada japonesa,
foi criada durante o período de reclusão do país e parou de ser praticada na
seguinte crise política causada pelo contato com o estrangeiro.
Bibliografia: